A inesperada virtude da Academia

Seria pouco provável um filme, que é uma crítica sem rodeios aos grandes heróis do cinema e portanto das grandes bilheterias (coloque na bacia, homens de ferro, aranha, morcego, entre outros) e um retrato atormentado do “ser ou não ser” dos astros da indústria do cinema em busca de um sentido maior na vida, ganhar a concorrida estatueta dourada de Melhor Filme. Ainda mais sendo o diretor, e também um dos roteiristas do filme, hispânico. Seria, mas estamos falando da maior indústria do cinema que já premiou filmes como Hanibbal ou Quem quer ser Milionário? entre outros filmes “ditos esquisitos, or unusual”. Mas foi assim, na esperada 87o cerimônia do Oscar, a noite dos storytellers como anunciou a presidente da Academia, Cheryl Boone Isaacs, em seu discurso sobre os filmmakers – “who cross borders and test boundaries”.

Boyhood (Boyhood – Da Infância à adolescência) um filme humano, gente como a gente, com ótimos diálogos e que foi produzido em 12 anos, não teve o reconhecimento esperado pela Academia, como teve pelo público. Mas não saiu sem uma estatueta: a mãe solteira “que segura a onda de tudo e de todos”, é ela quem constrói a história de Boyhood, uma heroína – cria seus filhos em meio ao caos e consegue, enfim que eles chegam à universidade. Papel de Patricia Arquette que de volta à telona, recebe o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante e sobe ao palco com tempo para um engajado discurso pedindo a igualdade de direitos para as mulheres nos EUA. Meryl Streep, fervorosa, levanta da poltrona e apoia a colega. Todos resolvem aplaudir.

A Teoria de Tudo (The Theory of Everything), sem dúvida, é um lindo filme. Baseado em fatos reais fez com que o grande público passasse a amar verdadeiramente Stephen Hawking. Como mágica, o cinema nos aproxima da ciência e mostra que afinal, não estamos tão distantes um do outro, e cientistas também têm coração. Assim, o precoce cientista gênio com uma doença degenerativa, na atuação impecável de Eddie Redmayne, leva a estatueta de Melhor Ator.

Do outro lado das poltronas estava o elenco de O Jogo da Imitação (The Imitation Game), tendo à frente Benedict Cumberbatche, o queridinho da vez mais conhecido por sua (brilhante) performance em Sherlock. A cinebiografia do matemático que mudou o rumo da Segunda Guerra Mundial, Alan Turing, ao contrário de Hawking, não teve um final feliz. Turing, era homossexual (o que era crime na época) e alguns anos após terminada a Guerra, cometeu o suicídio. Graham Moore, o jovem autor que escreveu o roteiro, fez sua confissão em pleno palco do tapete vermelho, com a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado em mãos: ele confessou que ele mesmo teve sua vida atormentada, por ser “diferente”, e como Turing, tentou o suicídio anos atrás. Concluiu seu discurso politizado com a frase “seja estranho, seja diferente”.

Mas um dos pontos de maior comoção em Beverly Hills foi a entrega do prêmio de Melhor Canção Original por ninguém menos que Julie Andrews. Literalmente, pode-se dizer que foi o prêmio que deu voz à noite do 87o entrega do Oscar. Com a canção Gloria (Glory), tema do filme Selma (Selma) – cinebiografia do ativista social Martin Luther King e das históricas marchas realizadas por manifestantes pacifistas até a cidade de Selma – tem até Oprah no elenco mas teve Ava DuVernay, diretor do filme, ignorado da lista de indicados. Os músicos John Legend and Common tiveram tempo para o discurso que foi o ponto alto da noite e foram aplaudidos de pé: “We live in the most incarcerated country in the world”, proclamou John Legend.

Uma nova comoção aconteceu na entrega da estatueta de Melhor Atriz para Juliane Moore pela sua atuação em Para Sempre Alice (Still Alice), que conta a história sobre uma renomada professora de linguística que enfrenta a doença de Alzheimer. Antes de abrirem o envelope, paira no ar uma certa tensão. Juliane é linda, excelente atriz, e o tema, importante. Humano. Ponto.

Talvez, o filme que tenha levantado interrogações nessa noite, algo como, o que esse filme está fazendo aqui? tenha sido O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel). Original e divertido, o filme levou os prêmios para turma de criativos – make & hair, design e tal. Assim, a turma descolada das artes, moderninhos e fãs de Wes Anderson também ganharam espaço na tradicional cerimônia do Oscar.

E então quando o relógio já estava chegando às duas da manhã aqui nos trópicos, Birdman ou A inesperada virtude da ignorância, começava a levar os melhores prêmios da noite: Melhor Fotografia, Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor, Alejandro G. Iñarritu… e buuum! Melhor Filme! Sean Penn, também ativista, politizado e tal, e que já trabalhou com Iñarritu (21 Gramas, 2003), escancara o mood da noite ao abrir o envelope e antes de anunciar Birdman, dispara:“quem deu o greencard para esse filho da mãe”?

No ano que o Ocidente foi assolado com o ataque ao estúdio de Charlie Hebdo, que a Coreia do Norte restringe as mídias sociais e ameaça o blockbuster A Entrevista (The Interview), a Academia parece ter levado a sério mesmo seu próprio discurso. Cheryl Boone Isaacs disse ainda na noite de ontem: “We have a responsibility that no one’s voice is silenced by threats. A responsibility to protect freedom of expression”.

Não passou despercebido nem do grande público. Prêmios para todos! Menos para Sniper Americano (American Sniper). Este, que seria o filme mais óbvio, esperado e ao gosto da nação, não só pelos milhões de dólares investidos e rendidos nas bilheterias, levou um prêmio técnico, o de Melhor Edição. Ponto. O consagrado diretor Clint Eastwood também entrou na lista dos diretores ignorados.

O fato é que o 87o Oscar se apresentou esse ano como uma premiação politizada. Birdman (embora seja meu favorito) no fundo, selou esse discurso. Inicialmente se apresentava como o azarão da noite. Parecia ter poucas chances, ou nenhuma chance, por ser tão cru, no sense, com personagens atormentados, nada carismáticos, por expor todos ao ridículo, e por levar às últimas consequências afinal, o que faz o cinema ser arte? Ou o que faz seus atores serem reconhecidos pelos críticos de arte?

Birdman, de certa forma, é o espelho da própria instituição da Academia e da indústria de cinema norte-americana. Lutando pelo seu reconhecimento junto ao público, junto à crítica. Tentando deixar de ser apenas uma instituição glamourosa e reconhecida apenas por blockbusters, grandes produções e clássicos; mas fiel, sempre, ao way of life e ao discurso norte-americano: o da liberdade de expressão. Um dos maiores storytelleres de todos os tempos.

A 87a premiação do Oscar foi a noite da inesperada virtude da Academia. Na América pode tudo.